Artigo encontrado na Revista de Ciências Farmacêuticas Básica e Aplicada. (Rev Ciênc Farm Básica Apl., 2010;31(1):15-23 ISSN 1808-4532)

Autor: Pires, A.P.S.1 ; Oliveira, C.D.R.1 *; Yonamine, M.1 1 Departamento de Análises Clínicas e Toxicológicas, Faculdade de Ciências Farmacêuticas, Universidade de São Paulo, SP, Brasil Autor correspondente: Carolina Dizioli Rodrigues Oliveira – Faculdade de Ciências Farmacêuticas – Av. Prof. Lineu Preste, 580-B13B – Cidade Universitária – CEP.05508-900, São Paulo, SP – tel: (11) 3091-2194 – e-mail: [email protected] Recebido 04/08/2009 / Aceito 11/03/2010

Autor correspondente: Carolina Dizioli Rodrigues Oliveira – Faculdade de Ciências Farmacêuticas – Av. Prof. Lineu Preste, 580-B13B – Cidade Universitária – CEP.05508-900, São Paulo, SP

RESUMO

A ayahuasca é uma bebida psicoativa originariamente utilizada em rituais de tribos indígenas da região amazônica. Esta bebida é preparada pela infusão de caules da Banisteriopsis caapi Morton, que contém β-carbolinas que são inibidoras da monoaminoxidase (MAO), e de folhas da Psychotria viridis Ruiz & Pavón, que contém o alucinógeno N,N-dimetiltriptamina (DMT). A enzima MAO degrada a DMT no fígado e intestino. No Brasil, a ayahuasca tem sido incorporada em rituais de grupos sincréticos religiosos e seu uso dentro do contexto religioso é amparado por lei federal. Atualmente, esses grupos têm se espalhado na Europa e Estados Unidos, chamando a atenção de pesquisadores internacionais quanto aos efeitos da ayahuasca. Estudos têm indicado que a ayahuasca poderia ter aplicações terapêuticas como no tratamento da farmacodependência e até sugerem seu uso seguro por adultos sadios. Entretanto, poucos estudos têm sido conduzidos para melhor avaliação de suas propriedades. O objetivo do artigo é mostrar uma revisão geral da história até as recentes descobertas envolvendo a farmacologia e a toxicologia da ayahuasca.

INTRODUÇÃO

A ayahuasca, também conhecida pelos nomes de caapi, daime, yajé, natema, vegetal e hoasca, é uma bebida composta pela associação de duas plantas primordiais: o caule da Banisteriopsis caapi Morton e as folhas da Psychotria viridis Ruiz & Pavón (Callaway & Grob, 1998; Santos et al., 2006). Originalmente, era utilizada por grupos indígenas associados ao xamanismo e por vegetalistas curandeiros que praticavam a medicina popular à base de extratos vegetais. A palavra ayahuasca é originária da língua quéchua e quer dizer: “aya”: “pessoa morta, espírito” e “waska” que significa “corda, liana, cipó”; logo, traduzindo-se para o português ficaria “corda dos mortos” (Luna, 1986; Tupper, 2002).

A combinação do caule com as folhas forma uma associação sinérgica, pois a B. caapi possui β-carbolinas: harmalina (HRL), harmina (HRM) e tetraidro-harmina (THH), inibidoras reversíveis da enzima monoaminoxidase (MAO) e a P. viridis, contém a N,N-dimetiltriptamina (DMT), que é um potente alucinógeno, também metabolizada pela MAO. Dessa forma, a ingestão da bebida proporciona aumento nas concentrações de serotonina e torna biodisponível a DMT por via oral, provocando ação alucinógena (Callaway & Grob, 1998). O uso da ayahuasca é difundido em vários países da América do Sul, tais como Peru, Bolívia, Colômbia, Brasil, Venezuela e Equador e nos últimos anos, grupos de seguidores dessas religiões brasileiras têm se estabelecido nos Estados Unidos e em vários países europeus, incluindo a Alemanha, Inglaterra, França e Espanha (Riba et al., 2003; Tupper, 2008). Embora tenha existido toda essa expansão no consumo, é apenas no Brasil que se desenvolveu o uso ritualístico em populações não-indígenas, centralizadas em rituais religiosos.

Entretanto, o Brasil é o único país a ter o uso da ayahuasca para fins religiosos amparados por lei, a exemplo do que ocorre com o uso do peyote (Lophophora williamsii, um cacto que contém mescalina) pela Native American Church nos Estados Unidos (Riba et al., 2001). O uso religioso da ayahuasca foi reconhecido como prática legal no Brasil pelo Conselho Nacional Antidrogas, em Resolução de 04 de novembro de 2004 (Conselho Nacional Anti-drogas, 2004). Entretanto, apesar da longa história e tradição do uso indígena e a incorporação dessa prática em grupos religiosos ter se expandido mundialmente nos últimos anos, relativamente poucas informações pré-clínicas e clínicas foram acumuladas no sentido de fornecer uma base científica consistente para afirmar que o uso da ayahuasca é seguro ou não (Barker et al., 2001; McKenna, 2004). Essa falta de informação abre margem para especulações e controvérsias sobre os possíveis efeitos indesejados da exposição aos alcalóides presentes nessa bebida. Desta forma, o objetivo do presente trabalho foi fazer uma revisão dos aspectos farmacológicos e toxicológicos da ayahuasca encontrados na literatura científica.

HISTÓRICO

No mundo todo, estima-se que exista cerca de meio milhão de espécies vegetais. Destas, mais de 450 espécies de plantas e cogumelos com potencial de abuso podem ser definidas como psicoativas, dos quais cerca de 120 possuem propriedades alucinógenas. Plantas alucinógenas estão entre as mais antigas drogas usadas e abusadas pelo homem. Durante séculos, a utilização destas plantas era associada somente à religião, magia e medicina. Entretanto, as mesmas características dessas plantas que levaram à sua incorporação em importantes rituais e tradições espirituais, também resultaram em seu abuso (Cunningham, 2008).

Em 1845, Jacques Moreau publicou o primeiro texto sobre alucinógenos, onde observou que alguns compostos permitiam a transformação de pensamentos em experiências sensoriais. Em 1924, o alemão Loius Lewin, creditado como estudioso pioneiro, antropólogo e “avô” da investigação científica em toxicologia e psicofarmacologia, escreveu a monografia intitulada “Phantastica – um estudo clássico sobre o uso e abuso de plantas que alteram a consciência”, e em sua obra já citava as propriedades alucinógenas da ayahuasca (Cunningham, 2008).

Nos últimos anos, o uso da ayahuasca tem se expandido além da cultura indígena e vem sendo utilizada em alguns movimentos sincréticos religiosos, que buscam um meio de facilitação do autoconhecimento e introspecção (Yritia et al., 2002; Carlini, 2003). Dentre esses grupos, os que mais se destacam são: o Santo Daime, a União do Vegetal (UVD) e a Barquinha (Labate, 2004). Essas comunidades religiosas foram criadas após o início do ciclo da borracha em 1930, período de urbanização da região norte do país e de grande interação entre seringueiros e indígenas de tribos xamânicas (Chauí, 2000). Nesse período, em Rio Branco, capital do Acre, Raimundo Irineu Serra, ex-seringueiro, migrante do Maranhão e conhecido “curador”, após ter experimentado a bebida oferecida por pessoas que tiveram contato com costumes indígenas, começou a ter visões que mudaram seu comportamento e qualidade de vida (Goulart, 2004).

Iniciava, então, um culto de comunidade que possuía como ponto básico a ingestão da ayahuasca denominada aqui de Santo Daime, que daria também origem ao nome da religião. O culto daimista foi um marco rompedor da antiga tradição de consumo da bebida sem contexto por parte das tribos indígenas para uma nova forma, contextualizada e bem definida, com objetivos e regras estipuladas. Por volta de 1945 foi fundada por Frei Daniel Pereira de Mattos a Barquinha, também em Rio Branco, Acre. Talvez esta seja a linha ayahuasqueira mais eclética das três, possuindo influências de práticas religiosas, tais como catolicismo, xamanismo indígena e religiões afro-brasileiras (Goulart, 2004; Labate, 2004).

Na década de 1960, através do “mestre” José Gabriel da Costa, forma-se a União do Vegetal (UDV) com sede em Planaltina (Brasília-DF). Esta organização possui uma doutrina cristã-reencarnacionista, permeada por elementos do espiritismo kardecista e de outras manifestações religiosas urbanas. Existem hoje cerca de cinco mil pessoas ligadas à UDV em diversos locais do país (Labigaline, 1998; Labate, 2004).

As três principais vertentes (Santo Daime, UDV e Barquinha) têm em comum o fato de pertencerem a uma mesma tradição de religiosidade não-indígena de consumo da ayahuasca no Brasil. Assemelham-se com relação ao preparo do chá, à cerimônia e às regras para adesão dos membros. Porém, cada uma delas possui diferenças de contexto religioso e social significativas entre si, o que veio a originar cisões em relação aos grupos originais (Labate, 2004; Tupper, 2008).

Apesar da longa história e tradição do uso indígena, e a incorporação dessa prática em grupos religiosos ter se expandido mundialmente, relativamente poucas informações pré-clínicas e clínicas foram acumuladas no sentido de fornecer uma base científica consistente para afirmar que o uso da ayahuasca é seguro (Barker et al., 2001; Mckenna, 2004). Essa falta de informação abre margem para especulações e controvérsias sobre os possíveis efeitos indesejados da exposição aos alcalóides presentes nessa bebida.